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sexta-feira, 16 de dezembro de 2011

Colecionar arte: obsessão ou investimento?

Há homens que colecionam sonhos, sombras, memórias, cavalos, automóveis, mulheres e pesadelos. Uns guardam dinheiro. Outros guardam livros e quadros em estantes, paredes ou em cofres fortes. Que delírio poético e econômico norteia esses seres que passam a vida colecionando coisas? Que instinto fez com que os primeiros homens guardassem os fósseis e as pedras trabalhadas pelo tempo e pelo vento? Que desejo é esse que faz com que os meninos organizem álbuns de figurinhas e as meninas pétalas de rosas ou asas de borboleta nos diários? Sem entrar nas razões psicanalíticas ou imaginárias, a verdade é que o colecionador é uma espécie de homem-museu que tenta elaborar com imagens ou objetos a história do homem. No seu Elogio de la sombra, Jorge Luis Borges fala do guardián de los libros como aquele que custodia em sua torre, sala de visitas ou de consultas, o concerto e o desconcerto do mundo. Guardião da arte, o colecionador seleciona obras que cifram e decifram o mundo através de linhas, cores, texturas e materiais. Neste número 31 do Boletim do MARGS, tentamos inquirir, poética e economicamente, as razões que levaram o Dr. César Bernardi, o Dr. João Borges Fortes e João Manoel Lopes a se aventurarem nessa fascinante, difícil e sábia arte de colecionar.
MARGS – Jorge Luis Borges diz que o colecionador é obra do “azar” ou da vontade de “deuses malévolos”. Como é que vocês se transformaram em colecionadores?

César Bernardi – Meus pais sempre se interessaram por arte. Eles tinham um gosto especial por obras de pintores do Rio Grande do Sul e por objetos antigos. Assim, a primeira obra eu ganhei de herança há mais de 30 anos. Era um pastel do Pelicheck, que me foi dado como presente de casamento. Assim iniciei a minha história de colecionador.
João Borges Fortes – Comecei a me interessar por arte na época em que morava nos Estados Unidos. Lá, eu freqüentava muitos museus e coleções particulares. Na volta ao Brasil, aí por 82, adquiri uma escultura do Xico Stockinger e uma pintura do Baril, que comprei na Galeria Tina Presser.
João Manoel Lopes – Minha coleção iniciou com algumas gravuras, desenhos e uma pintura do Henry Andrews, de 1856, que me foram dados por parentes. A partir disso, me interessei pela arte e comecei a freqüentar leilões e galerias. A minha primeira compra foi duas pinturas do João Henrique Alemand, adquiridas na Galeria do Clube do Comércio. Na época isto foi um bom investimento.
E como se desenvolveu essa história de amor pela arte?
Bernardi – Há uns oito ou dez anos, o meu interesse era voltado mais para objetos antigos, pois, como já disse, fui criado numa casa em que as pessoas apreciavam muito as antigüidades. Embora, nessa época, estes objetos não fossem muito valorizados. Muitas vezes ouvi censurarem meus pais por comprarem velharias... Mas isto era na década de 30, onde se destacavam três colecionadores de antigüidades: os meus pais, o Ribeiroproprietário da Ribeiro Jung) e o Dr. Kern, médico-psiquiatra e um dos grandes restauradores de pintura do RS. Mas chegou um momento em que não tinha mais lugar dentro de casa para colocar objetos antigos. A coisa era tão dramática que, se outras pessoas entrassem, eu tinha que sair de casa. Então, me dei conta de que as paredes estavam desocupadas e passei a me interessar pela pintura. Aos poucos, as paredes da minha casa ficaram habitadas e resolvi, então, ocupar as paredes do meu consultório. Entre as primeiras obras adquiridas, me marcaram muito um Gotuzzo e um Angelo Guido. A partir daí, a coleção foi se ampliando quase como uma obsessão. Lembro que eu e a Maria da Graça, recém-casados, não tínhamos móveis, pois começamos nossa casa pelas paredes. Quando se fazia uma festa, as pessoas tinham que sentar no chão, mas as paredes já estavam com quadros. Todo nosso dinheiro era gasto em obras de arte.
Lopes – Para continuar essa história de amor, vendi minha BMV importada para adquirir Milton DaCosta, Geza Heller, Antônio Maia, Xico Stockinger e outros. E aí, fiquei a pé até hoje.
Dizem que a crítica é o exercício de critérios. Quando alguém começa a se sentir um colecionador, como ele passa a agir?
Fortes – Você começa a sentir-se um colecionador quando as pessoas acham que você é um colecionador. Eu ainda não me considero um, talvez um dia possa sêlo, pois ninguém forma uma coleção de arte de um dia para outro. É uma coisa muito cara. Leva uma vida...
Bernardi – Concordo com o Fortes. Eu também não me considero um colecionador, mas de repente vejo que estão me chamando. No início, é preciso se aconselhar com pessoas experientes, com mais vivências no mundo das artes, para receber orientação. No início, me ajudaram muito o Roberto Silveira, homem sério e correto, e a Maria Helena Webster.
Lopes – Uma coleção não se completa nunca, nem um colecionador. Eu obtive conhecimentos mais amplos sobre arte estudando com o Scarinci e freqüentando o mercado de arte, onde circulam importantes informações. Nesse sentido, a Tina Presser, o Roberto Silveira e a Iara Kraft foram significativos.
Fortes – Acho que depois que a pessoa descobre o gosto pela arte, ela deve educar esse gosto, visitando museus, indo a exposições e informando-se sobre artistas da sua terra, do país e do mundo. Conhecer e conversar com artistas também é muito importante. E as galerias deveriam atuar de uma forma mais didática e cultural e não apenas como espaços para venda de uma mercadoria. O certo é que um colecionador tem que ter uma visão ampla de arte, tem que freqüentar todos os circuitos disponíveis.
Para formar uma coleção, o que é mais importante: as galerias, os leilões ou a compra direta dos artistas?
Bernardi – As galerias trabalham em cima de artistas novos e consagrados, fazendo muita divulgação. Já os leilões, via de regra, baseiam-se mais na venda de nomes conhecidos e com cotação no mercado. Neles, geralmente, as obras alcançam preços muito altos, até porque a estrutura de um leilão é dispendiosa e cara. Eu acompanhei os leilões da massa falida do Rubem Beck, que foram excelentes para os compradores. Ali, o martelo corria de um modo mais livre. Antigamente, os leilões eram mais ocasionais e não tão dirigidos às artes plásticas, pois nesses predominavam as antigüidades. Hoje se vêem leilões extremamente artificiais, com todo um arranjo onde até os compradores já estão previamente definidos.
Fortes – Eu não me considero um freqüentador de leilões, embora tenha participado de vários e até adquirido um bom quadro do Siron. Mas as aquisições que fiz neles não são relevantes, se comparadas a outras feitas em galerias de todo o Brasil. Acho que um colecionador não deve se restringir a uma só galeria e também adquirir obras diretamente dos artistas. As relações que mantenho com os artistas é uma das coisas que me mantém no meio artístico. Se não fosse essa ligação afetiva, talvez até já tivesse saído dele. Eu, inclusive, posso dizer que tenho quase uma coleção paralela de trabalhos recebidos de presente. Artistas como o Brito Velho, o Barth, o Xico e o Tenius, geralmente, nos meus aniversários, me presenteiam com obras deles. Assim também se forma e se amplia uma coleção.
Lopes – Eu nunca fiquei preso a nenhum marchand, pois a gente sabe que as galerias trabalham com um número determinado de artistas e o que têm lá, aparentemente, é o melhor. Às vezes é preciso discordar dos marchands. Nesse ponto sou irreverente: compro de todas as galerias e a partir dos meus critérios.
Como vocês definem suas coleções?
Bernardi – A minha é muito variada. Tenho vários acadêmicos e um número significativo de contemporâneos nacionais. Hoje, sinto uma tendência que me atrai para os gaúchos. E não sei bem explicar o porquê. Na verdade, nunca me preocupei em ficar dentro de um estilo. Opto sempre pelo que me atrai visualmente. E esta é uma das razões que me fez trazer uma parte da minha coleção para o consultório. Assim ela faz parte do meu dia-a-dia. Posso senti-la e presenciá-la. Alguns clientes perguntam se moro aqui. Eu não moro, mas como a sala é grande, eu a ocupei de modo que me sentisse bem com a presença das coisas de que eu gosto. Alguns perguntam se eu não tenho medo que roubem um quadro da sala de espera. Respondo que não sou fatalista: se roubarem, roubaram... Enquanto estão aqui, me dão prazer. Os objetos têm que ser usados. Na minha casa todos os objetos antigos estão em uso. Uma coleção não pode ser estática. Ela tem que fazer parte da vida.
Fortes – Eu a classificaria de nacional-contemporâneo. Isto não quer dizer que não tenha artistas regionais. Tenho e muitos. Mas são artistas que têm penetração em outros centros.
Lopes – Em arte, eu sou mais universalista. Não vejo arte como cunho regional ou nacional. Na minha coleção há artistas nacionais que competem com qualquer um de nível internacional. Eu tenho arte de toda parte. Inclusive gravuras de Toulouse-Lautrec. Não me preocupo com escolas. Tenho objetos, pinturas, esculturas, instalações, desenhos. Pessoalmente, gosto mais do papel do que de qualquer outro suporte. Meu acervo é de quase 900 obras.
Afinal, colecionar é paixão ou investimento?
Bernardi – Eu não vendi ainda nenhum quadro. Mesmo com aquele de que a gente gosta menos sempre há um certo ciúme. É como o marido que se separa da mulher e, quando ela arruma outro homem, sente ciúmes. É que sempre continua havendo um certo amor. Tenho coisas guardadas e às vezes penso em trocá-las ou mandar para leilões. Na hora H falta coragem... elas já fazem parte da minha história. Para mim a arte tem mais valor como prazer do que como investimento. Há 15 anos, eu era um sujeito muito clássico. Certas coisas eu não admitia na minha parede. Mas este ano, minha mulher me deu uma escultura do Antônio Rocha, no dia dos namorados, que é uma orgia de cores. Mudei... devo estar envelhecendo. Antes eu achava que só louco poderia gostar e aceitar aquilo.
 Fortes – Eu já troquei vários quadros. Cheguei a dar 5 ou 6 por 1. Esta é uma maneira de adquirir obras desejadas que a gente não tem condições de adquirir em razão do alto custo. Eu não compro baseado em investimento. Encaro a arte pelo prazer que ela possa me dar. Na realidade, não me preocupo com quanto ela vale. Se meu Herbert Bender daqui a 10 anos for um zero à esquerda, isto não me preocupa. Comprei porque gostei e me custou barato. E esta minha filosofia vale para novos e consagrados: compro o que gosto e o que posso pagar. É claro que gostaria, como qualquer colecionador, de ter todos os mestres nacionais.
Lopes – Quando eu não consigo ter uma pintura de um determinado artista, compro um guache. Mais tarde ele valoriza. Então dou ele como parte do pagamento da pintura que desejo. Já fiz isso com obras do Iberê. É um tipo de negócio que as galerias praticam. Esta é a solução que temos quando os artistas e os marchands aumentaram mil por cento seus trabalhos. Os meus rendimentos não aumentaram na mesma proporção. Outro caminho é comprar de baixo para cima, apostando nos novos. Assim comprei trabalhos da Karin Lambrecht e do Frantz que supervalorizaram. O Frantz, até esses dias, vivia vendendo seus trabalhos debaixo do braço, hoje ele está muito cotado no mercado. Um colecionador tem que ter capacidade para enxergar quem é bom.
Como vocês vêem os convites para exporem suas coleções em museus e outros espaços públicos?
Bernardi – Projetos levados seriamente sempre terão apoio dos colecionadores.
Fortes – Todo projeto sério em arte deve ser prestigiado. O Espaço Colecionadores, criado pelo MARGS, é um belo projeto, pois a arte deve ser vista pela maior quantidade possível de pessoas.
Lopes – A Evelyn e sua equipe de trabalho tiveram a sensibilidade de dar nome e continuidade a esse espaço, aberto pelo Tatata Pimentel em 82, com obras da minha coleção. É o que fazem os grandes museus da Europa e dos Estados Unidos. As obras de arte são para o mundo e não para enfeitar as paredes da casa. A minha visão é socializada. Eu tenho emprestado obras para o MARGS. Algumas pessoas me dizem: “Tu estás louco, Lopes? Um cara passa uma gilete e adeus obra.” Ou, “o Museu queima, e tu não tens seguro”. Eu não posso estar preocupado com um incêndio no Museu e com a perda de minhas obras. Ainda outro dia, uma moça suíça, que visitava o MARGS, ficou impressionada porque eu carregava o meu Toulouse-Lautrec debaixo do braço “Você anda com isso pela rua?” Eu respondi. “Ando. Isso aqui não é a França. Não há problema. Sou divorciado das minhas obras.”
E os cuidados com uma coleção?
Bernardi – Para mim é um passatempo manter as obras dentro dos cuidados necessários: cuidar a umidade, os fungos e o mofo. Às vezes é necessário mandar para uma revisão geral. À medida que se gosta das obras, são inerentes os cuidados que se tem com elas. Afinal, fazem parte da família e são cuidadas enquanto grupo familiar.
Fortes – Eu olho todas minhas obras detalhadamente. Não é só passar e dar uma olhadinha. É preciso examiná-las com o cuidado de um cirurgião. Tem pessoas que adquirem obras, penduram nas paredes e esquecem. Eu sou um cara que me relaciono permanentemente com elas. Costumo escovar os dentes caminhando pela casa e olhando as paredes. Olho os quadros e vejo se está tudo bem com eles. Como acumulei uma quantidade muito grande de gravuras e não tenho onde expô-las, criei um sistema para guardá-las. Coloco-as sobre um papel tipo passe par tout, afixadas com uma cola, que se chama metilcelulose e que pode ser removida com aplicações de água. Isto faz com que as gravuras fiquem esticadas e protegidas com um papel japonês. Utilizo, também, molduras que abrem e fecham por trás com bastante facilidade. Tenho estas molduras em 3 ou 4 tamanhos diferentes, o que me possibilita trocar e expor as gravuras segundo meu desejo.
Como vocês estão vendo o mercado de arte? Está difícil adquirir novas obras?
Bernardi – Nos últimos anos houve uma supervalorização dos objetos artísticos. A arte está sendo recomendada como um dos melhores investimentos. Isto torna difícil a vida de um colecionador, pois alguns artistas subiram tanto seus preços que se tornaram inacessíveis. A solução é adquirir obras de artistas novos e não se desesperar.
Fortes – A atual situação econômica do Brasil dentro do Plano Cruzado gerou um boom de investimentos no setor das artes. Com a Bolsa e os papéis não rendendo o que o especulador espera, ele se voltou para a arte. Mas esse tipo de público não é interessante para o meio artístico, pois logo que a Bolsa melhorar, ele muda seus investimentos. E aí já atrapalhou o mercado porque causou uma inflacão irreal e uma hipervalorização das obras. Como a liquidez é relativa, a solução é a troca. Foi assim que adquiri o meu lberê, o Ianelli e o Scliar. É o sujeito que tem dinheiro e compra indiscriminadamente. Com isto, avilta os preços no mercado. Ao colecionador resta apostar, então, nos novos valores, embora também aí as coisas estejam distorcidas. Artistas que não têm nenhuma trajetória têm preços que competem ou ultrapassam os mestres. Isto é um desrespeito com os compradores de arte, que não são fabricantes de dinheiro.
Entrevista concedida a João Carlos Tiburski e Gisele Scalco Sutil pelos colecionadores Dr. César Bernardi, Dr. João Borges Fortes e João Manoel Lopes
Boletim Informativo do MARGS, nº 31, out/dez , 1986 fonte: MARGS

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