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A respeitável senhora Gestrumbina

Antônio da Cruz
Elegante, ela chegou à loja-molduraria do Seu Osvaldo procurando algo especial. D. Gestrumbina havia comprado um sofá na cor amarela e queria uma moldura que combinasse. Tinha olhos só para molduras. Ela apreciou várias que guarneciam as telas. Indecisa, explicou a situação e pediu ao dono da loja-oficina que lhe ajudasse. Ele lhe apresentou típicos recortes como modelos num pequeno mostruário. Depois de relutância infinda ela resolveu optar por uma peça caprichosamente lavrada.
–“Bem”, disse Dona Gestrumbina. “-Vou querer uma assim, como esta”. O Seu Osvaldo deduziu que ela teria trazido, no automóvel logo ali estacionado, uma obra de arte para emoldurar. Ela não tinha. – “Agora, quero este modelo de moldura com um quadro dentro”. Disse enfática. O Experiente moldureiro, um crítico inato, sugeriu uma tela com obra figurativa pintada com primor e com dimensões de setenta por setenta centímetros, de um artista bom e famoso. Na época a obra custou três mil reais. 
Ora! Ora! Para a Sra. Gestrumbina o importante era a moldura. Haveria de combinar com a cor do sofá, das cortinas e do seu cabelo. “- De um  amarelo perolado” dizia ela. Era a nova decoração com a qual surpreenderia as amigas na próxima reunião social. Aquela moldura completaria o sucesso da decoração.
Dona Gestrumbina, de olho bom para a harmonia das cores dos elementos da “arrumação da casa”, certamente não se sentia com a responsabilidade de saber que uma obra de arte por si é algo especial, e a moldura – um adorno- pode ser até dispensada. Também nunca disseram àquela senhora cônscia das suas posses, residente em mansão de bairro nobre, que obra de arte não é um simples objeto de decoração para combinar com a cor, a forma de um sofá ou qualquer mobiliário.
Dava ela pouca importância ao fato de que, além da concepção, o tema que trata uma obra, pode gerar entusiásticos debates; não ligou que se dá à obra de arte atributos como estilo, categoria e valores: artístico, histórico, econômico e até sentimental; para ela inexistia a técnica, que é a maneira como foram empregados os materiais; tão pouco estava lá ela interessada em desenho, forma, textura da superfície, entre outros aspectos da beleza plástica a serem apreciados.
Dona. Gestrumbina tinha noções de composição e harmonia, que são aspectos clássicos para a admiração da beleza de um conjunto. Mas, a ela pouco interessava o artista, o seu universo e o seu tempo. Procurasse conhecer o engajamento do artista com o seu meio: se ele era criativo e estabeleceu linguagem e universo próprios ou se era um mero copista, podia-se dizer que ela sabia de fato o que estava adquirindo. Seu Osvaldo, honesto, jamais lhe daria um golpe oferecendo bugalhos. Sorte dela.
Tivesse noções de história da arte e D. Gestrumbina também se interessaria em saber por que pagou três mil reais naquela “moldura com um quadro dentro”. Através da história da arte se conhecem os movimentos revolucionários, a notoriedade dos vários artistas e os fatos importantes para a arte e a cultura dos diversos povos; saberia assim, também, como situar aquela obra adquirida.
Para uma pessoa que certamente lidava com muito dinheiro, D Gestrumbina não atentou para um detalhe importante no seu meio social: o quanto as obras de arte são bens de extraordinária valorização monetária.
O certo para a Sra. Gestrumbina é que ela saiu da loja com sua moldura, “amarelo perolado”, de três mil reais, para combinar com o sofá.
Cinco anos depois, aquele modelo do sofá saiu de moda. Por tabela, também a moldura, segundo ela. Senhora de coração generoso, dona Gestrumbina doou o sofá a uma família humilde, que nas principais festas do calendário anual saia da sua casa padrão zero quarto, do bairro Santa Maria, pra ficar embaixo do viaduto do DETRAN a ganhar presentes dos bons cristãos. Mas a moldura... Bem, a moldura, com aquele quadro dentro, ela não iria ter o desplante de abusar da ignorância dos pobres. Afinal, pobres não entendem de molduras.
Mandou uma das suas secretárias-do-lar deixar a peça num canto do depósito das tralhas por um bom tempo. Na translação, o mofo cobriu a emoção daquele momento já distante e a moldura esquecida num canto, como a memória de dona Gestrumbina ficou emaranhada em fios de casas de aranha. Numa das faxinas gerais que ela organizava com um exército de empregadas e diaristas, periodicamente, despachou a moldura com aquele mesmo quadro dentro para o lixão das cercanias. Afinal, aquilo foi apenas, há anos, uma moldura pra combinar com o sofá.

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