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O carbono e o diamante

Antônio da Cruz
“-Diga quem foi Zumbi, ô menino? /Sei lá, eu não sei não/ Qualquer um negro fugido, escravo fujão/ Repita pra aprender, ô menino! /Nadinha disso foi ele, não / Foi guerreiro de forte calibre, ô menino! / Sem tronco ou marca do ferrão/ Liberto nasceu, viveu e livre morreu, ô menino / Consciência e liberdade foi a sua lição/ Não conheceu o tronco ou açoite, ô menino/ Em terras de escravidão.”
Enquanto cantarola em ritmo de samba, um jovem sentado num banco de praça e de prancheta na mão desenha uma figura masculina de proporções hercúleas. É um negro medindo oito cabeças, uma medida clássica para desenhar o corpo humano, usada por artistas. Indica, assim, ser figura de alta estatura; próximo de dois metros.
O jovem desenhista utiliza-se de um lápis grafite, que é o mesmo carbono na sua forma alotrópica; o mesmo carbono capaz de se multiplicar em muitos outros compostos; o negro elemento que, no estado mais puro é diamante. No seu esboço surge uma alegoria de atmosfera épica.
O jovem interrompe sua cantiga e conta, para as pessoas que o rodeiam, enquanto desenha, que, noutro tempo e lugar, então menino, na calçada da casa avarandada do sítio onde morara, passava as tardes imaginativas também desenhando. Fora sempre levado a reproduzir com carvão e pedra calcária as cenas dos filmes de faroeste. Até os dezesseis anos de idade pouco soubera, pela escola, de um herói civil popular que orgulhasse os brasileiros que não fosse o Tiradentes. No mundo real e no imaginário a maioria dos heróis era estrangeira.
Nas histórias em quadrinhos, nos grandes romances, na telona e na telinha, era inconcebível o negro como herói; salvava-se nas chanchadas como personagens cômicos: atabalhoados, estúpidos e ridículos. Por força dos padrões seculares de imposições estéticas, sociais, morais e religiosas o negro era o estorvo que nem o próprio negro queria ser. Naquelas películas o espelho do negro não era um negro heróico, mas, personagens estereotipados do cinema branco, que para o negro, como regra geral por questões ponderáveis não poderiam valer. A negritude se plenamente exposta seria ridicularizada ou reduzida à condição de “manifestação selvagem de povos primitivos despossuídos de cultura”.
Aqueles que poderiam também ser mocinhos, pela ideologia vesga só lhes cabiam papéis de vilões. Pela voz didática e emocionada da sua mãe as histórias eram outras. Nas suas narrativas havia relatos de fugas de cativeiros, das técnicas de açoites e torturas horripilantes a que eram submetidos os negros. “-No princípio eu não entendia porque minha mãe contava as histórias e chorava. Demorei a entender que ela falava da sua gente, ainda que de tempos distantes”, diz ele.
Conta ainda o artista que foi num ocaso de dia invernoso, que, bem pequenino, ouvira falar de um Zumbi: o Zumbi dos Palmares. A mãe conversava com D. França, mulher também negra, mas idosa, filha de ex-escravos que trazia lembranças de um Zumbi aterrorizante. D. França misturava a imagem do homem com a de uma figura fantasmagórica.
O Zumbi ao qual a velha senhora França se reportara era resultante da campanha de descrédito à imagem do Zumbi dos Palmares promovida pelos senhores escravocratas. Joaquim Manoel de Macedo no livro “As Vítmias-Algozes”, feito como parte da propaganda anti-escravagista
ultra-conservadora dos interesseiros adesistas de última hora ao fim da escravatura, no final do século dezenove, escreve: “O zumbi era um monstro negro e imaginário, herói sinistro de estúpidas e horríveis histórias, com que as escravas, em vez de entreter, assombravam o nervoso menino (Luís, personagem de um dos contos), com a mais lamentável e perigosa inconveniência, o que, aliás, é infelizmente muito comum em nossas famílias.” Macedo demonizava o negro para convencer os fazendeiros a largarem a escravidão. Ele apresentava o africano como potencialmente perigoso, e uma vez sendo vítima da escravidão, tornava-se logo assassino.
A mãe do menino, dona-da-paciência-do-mundo-todo quase didaticamente consertara: “O Zumbi aterrorizava mesmo, mas àqueles que lhe perseguiam, porque o negro era lutador e esperto demais; quando em desvantagem e acuado, lutava até conseguir escapar e sumir aos olhos dos seus caçadores. Com suas táticas e bravura, Zumbi dava à própria imagem ares de espírito misterioso e imortal, o quê alimentava a superstição dos seus inimigos. Somente a tortura a um dos seus bravos pôde fazê-lo fraquejar a ponto de entregar Zumbi, e só assim, traiçoeiramente puderam por fim à vida do guerreiro”.
Na esteira do tempo o menino foi percebendo os porquês daquela situação que jogavam Zumbi no porão da história. Concluiu que, além de reproduções da visão de Manoel Macedo, como o fez D. França, havia uma fórmula ou uma combinação tácita entre os “homens de bem” das várias camadas sociais: era necessário se habituar à presença do negro livre, mas, para não haver sentimento de culpa e preocupação com seu destino, depois de tê-lo usado e largado à sorte com o fim da escravidão, deveriam ignorá-lo. Tudo reforçado por um ritual cotidiano recorrente de palavras impronunciáveis: preconceito, discriminação e racismo. Não-ditas, essas expressões funcionaram como se nenhum desses substantivos existisse; como uma cortina, um dissimulador, mas, levadas a efeito no dia-a-dia se sedimentavam como sentenças alimentadoras da indiferença. Silenciosamente.
Aquela figura de bravura descomunal foi ganhando volume e consistência na imaginação do menino. Nas enciclopédias e nas literaturas específicas descobria, aos poucos, o Zumbi que deixava de ser um mito para surgir como homem crível. Zumbi, brasileiro livre, negro. Queriam-no escravo. Queriam, mas não o fizeram. Lutou e morreu livre. Hoje é herói nacional.
Tudo isso aquele menino aprendeu. O desenho que agora, adolescente, faz na praça, resulta também de leituras não-literárias; das observações das relações humanas: comportamentos, interesses, valores e atitudes. Constatou que o negro foi extraído da sua terra, submetido ao trabalho forçado para construir nações, mas também ofereceu resistência para não sucumbir; na luta se lapidou visando sempre a liberdade, esse eterno brilho da dignidade.
Ao cabo de uma hora o rapaz conclui a sua obra: um homem negro sobre um diamante igualmente descomunal, unidos, ambos flutuando. Sintetiza assim o nosso artista a sua idealização de um herói magnífico e poderoso. O negro e o diamante semelhantes. Nas jazidas deste mineral, comuns na África, o carbono é negro e opaco; ao ser submetido a descomunais pressões geológicas se converte na preciosidade que é o diamante. A lapidação lhe confere a beleza e acentua-lhe o brilho.
O jovem artista assina Zumbi; olha para as pessoas ao redor e diz: -“Todos nós somos livres; somos todos Zumbi” e reinicia a sua cantiga: “- Liberto nasceu, viveu e livre morreu, ô menino / Consciência e liberdade foi a sua lição/ Não conheceu o tronco ou açoite, ô menino/ Em terras
de escravidão.

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