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Herança indesejável

*Antônio da Cruz
Era o ano de 2003 quando um grupo de pessoas ligadas à cultura foi convidado pelo 28o BC, Batalhão de Caçadores - Batalhão Campo Grande - localizado no Bairro 18 do Forte, Aracaju, a compor a comissão julgadora de uma das gincanas de pintura organizadas pelo exército.
Enquanto aguardava o início das atividades do grupo, o jornalista Ivan Valença, um dos convidados, comentou em tom de curiosidade que ”Há 20 anos, aquelas pessoas, exatamente aquelas, não seriam convidadas a estar ali”. Em complemento ao comentário, caberia afirmar que, certamente aquele evento também não aconteceria.
A Gincana de pintura era uma atividade promovida com o fim claro de reaproximar a sociedade civil da instituição cuja essência sentimental é constituída pelo que se costuma chamar de amor patriótico. Em relação ao comandante de então, o Tenente Cel Jaborandy Rodrigues, um típico brasileiro nas suas características físicas, de pele brônzea, tanto quanto aqueles soldados simples, gente do povo, sob seu comando, pode-se deduzir que sabia ele o quê estava a fazer e o quê pretendia diante da nova conjuntura. Configurava-se assim, na realidade local, um reforço para a democracia de fato.
Havia o Brasil eleito um operário para presidência da república. Levado ao poder por aqueles setores antes tidos como “perigosos para a segurança nacional”. Na nova conjuntura brasileira havia tolerância, diferente dos tempos dos governos conservadores. E a intolerância em relação aos civis não poderia continuar dentro do exército, muito menos com o mesmo grau de ferocidade corrente no período ditatorial.
Entre os convidados havia um sindicalista que ocupava um cargo de diretor de uma galeria pública de arte, em uma administração de cunho popular, um jornalista e um professor militantes igualmente combativos. O exército, certamente tinha as informações: quem eram e o quê eles faziam no momento. No período da ditadura, tais informações seriam colhidas, para fins totalmente opostos. Se convidados os personagens citados não o seriam para enaltecer a arte e cultura.
As gincanas de pintura organizadas pelo 28o BC duraram pouco. Segundo a divulgação, houve em torno de quatro edições. Mas o importante é que, de certa forma, quebrou um pouco a sisudez na relação, pelo menos entre aqueles artistas e a instituição. Após este evento, mediante as impressões deixadas, deu para se recompor a imagem do exército.
Assim como diz o militante trabalhista, que “O sindicato somos nós” dá para dizer que o exército somos nós a partir dos tipos humanos que o constitui. E pode-se imaginar ainda uma invasão ao território nacional. Cada brasileiro se sentiria tomado pela vontade incontida de defender o seu torrão. O clima de comoção favoreceria. Nesta hora, o sujeito que nunca teve uma arma ao alcance da mão desejaria tê-la e combater aquele que identificaria claramente como inimigo usurpador da sua liberdade.
Diante da realidade histórica, no entanto, difícil é aceitar que, o nosso exército embalado pela guerra fria e animado pelos dogmáticos da TFP, enxergasse entre os brasileiros ansiosos pelo progresso econômico e social, os inimigos a serem combatidos. Mas, foi mesmo o exército - que nós somos - quem deu o golpe, ou um grupo de militares?
Se o exército somos nós, o exército brasileiro não são os sequazes do Tio Sam que assaltou o poder e rasgou a constituição brasileira. O bando de violadores da realidade nacional que fez isto usou o exército contra o povo e seus representantes ao fechar o parlamento, torturar, matar e enterrar em valas clandestinas pessoas, tanto militantes da liberdade quanto indiferentes ao caos político gerado por eles mesmos, os generais malsinados.
Foi uma caterva que apeou do poder o governo legitimamente eleito. Logo, o exército brasileiro não tem hoje o quê comemorar e muito menos do que se orgulhar. Esta comemoração é encampada por alguns poucos – pouquíssimos - militares de pijama, e somente os envolvidos no maior ato de corrupção nacional: o golpe militar de 31 de março de 1964. Como grande parte dos principais golpistas está morta, só se pode falar em herança vaga ou sem herdeiro.
O que o exército brasileiro tem de fazer a cada 31 de março é repudiar os golpistas. Não há herança jacente e nem o Estado, a sociedade ou o exército devem ser curadores desta tão triste e vergonhosa memória, a ponto de preserva-la como se fosse um feito magnânimo.
O militar maduro e o jovem da ativa não podem incorporar a desordem institucional, não devem absorver como valor o crime contra a própria pátria. As gerações de militares posteriores à ditadura nada tem a ver com aquela golpista. A comemoração do golpe por parte de militares, ou quem quer que seja, é mais um crime contra o povo, logo, contra o próprio exército.
Artistas, jornalistas, poetas, escritores, produtores e toda a gente que usufrui e tem a liberdade democrática como alavanca para a sua atividade, deve igualmente valorizar o momento em que se vive. Ainda que se possam identificar imperfeições na democracia. Pior foi o pesadelo engendrado por aquele bando fardado, que, ainda hoje nos seus estertores quer se escudar nas tropas para validar o terror institucionalizado do qual o exército brasileiro jamais deverá querer como herança.

*Antônio da Cruz é brasileiro

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