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Realidade invasora

Antônio da Cruz
Obras de arte produzem emoções e polêmicas. E não precisa ser uma obra consagrada de um artista de grande notoriedade. Uma arte gráfica, um simples cartaz que anuncie qualquer evento pode detonar um conflito considerável. Isto se torna agudo quando certas particularidades de grupos religiosos, comunitários ou profissionais são mencionadas numa peça artística, seja sob a forma de gracejo, metáfora ou quando lhes são apontadas características que seus membros não gostariam de ver evidenciadas. Esses grupos se sentem decrescidos na sua importância ou atingidos moralmente.
Certa feita foi notícia no Cinform a indignação de uma profissional da área de saúde por ter visto um cartaz anunciando o filme “As Enfermeiras Prostitutas”. Tratava-se de um filme dito pelo senso comum de sem classificação. Mas, o que chamara atenção no gesto daquela senhora era o fato dela vestir a carapuça e fazer as pessoas que, sequer se lembravam do já decadente Cine Rio Branco, passarem lá para ver o cartaz, e até o filme. Diante da prosaica reação certo artista de teatro disse: “Tai! Sente-se ela ofendida, e o que diria uma prostituta, caso sentisse ojeriza à profissão de enfermeira?”
Ponderando: ninguém deve ser ofendido por ter esta ou aquela profissão. Cada nobreza com a sua duquesa: profissão como a de enfermeira é nobilíssima e merece toda consideração. As prostitutas também merecem respeito. Os garotos de classe média que espancaram, e por pouco não mataram àquela empregada doméstica no Rio de Janeiro, há poucos anos, por “confundi-la com uma prostituta”, certamente pensaram como a enfermeira acima.
Não há porque substituir o senso de humor pela sisudez em tudo. Se todos os autores, artistas como palhaços, atores, chargistas e desenhistas gráficos fossem tratados como criminosos pelo que fazem a alegria e a paz seriam vencidas pela zanga e o ódio dos enfezados. Certamente há falta de compreensão sobre as dimensões em que se põem a arte e a realidade.
O dramaturgo pernambucano Nelson Rodrigues adorava por na boca dos seus personagens o nome de certas profissões como se fosse xingamento, do tipo: “Deputado! Você é um deputado. Deputado! Deputado!”; ou: “Contínuo! Você é um contínuo!”... Poderia ser entendido como mera provocação, mas na verdade era um recurso dramático. Num filme qualquer roteirista pode por um bandido como ministro do STF soltando um vilão do sistema financeiro. Por mais que isto tenha paralelo no mundo real, o autor está criando o seu fato ficcional; é sua fantasia, e pronto. Em casos como estes, os autores mudam os nomes dos personagens para se protegerem dos vilões do mundo real, pois nele existe bandido que, em crueldade e artimanha supera a vilania ficcional.
O aprendizado na distinção do real e da fantasia começa nas brincadeiras de faz-de-conta que, na infância, encerram-se quando as crianças se fartam ou um adulto as chama para o cumprimento de obrigações típicas, como o dever de casa. Brincadeiras e jogos são atividades que se prestam para estimular a emoção contextualizada e orientar a sensibilidade. A brincadeira tem hora para começar e acabar; sem esta compreensão a confusão está estabelecida. Mas, crianças criadas com o excesso de obrigações, isoladas e sem amigos tendem a se tornar adultas desconfiadas, sem senso de humor e com dificuldade de aceitar brincadeiras. Notadamente isto se agrava quando os pais são conservadores e opressores.
A arte lida com o verossímil, ou seja, que chega próximo, mas não necessariamente ao fato concreto. No contraponto, a arte se afasta da realidade com o nonsense, quer-se dizer: criando-se situações absurdas. Juntando-se as duas configurações pode-se dizer que, por mais próxima da realidade que se insinue a arte, também estará perto do absurdo. O desenho infantil que a criança diz ser a mamãe não é a mamãe. É aí começa o aprendizado da representação.
É neste espectro que a arte se torna o único refúgio para o máximo da liberdade de expressão. A Arte não invade a vida particular de ninguém porque ela é parte da vida universal. Ainda que nos sirva para refletir sobre a realidade, arte será sempre arte. Por isto, ela pode tratar de todos os temas sem hipocrisia. O perigo se dá quando a realidade sisuda invade a arte tolhendo o artista.
Quando se descontextualiza um assunto qualquer e o trata com a superficialidade da fofoca, ou o reduz à pobreza do maniqueísmo, aí sim, somente se enxergarão a injúria e a infâmia que são tidas como crimes contra a honra. Assim também acontece em relação à arte. Enfim, a despeito dos carrancudos e mal humorados, ela nos leva e eleva desde a contemplação sensível e confortável à profunda e inquieta reflexão. Por isto, enquanto houver arte haverá êxtase e polêmica.

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